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DECLARAÇÃO PÚBLICA DE ESTADO DE LUTA – QUE NOSSAS MORTES NÃO SEJAM EM VÃO!

  • MNU Recôncavo
  • 29 de nov. de 2019
  • 4 min de leitura

Elitânia de Souza da Hora era uma mulher preta, uma liderança quilombola (secretária da Associação de Mulheres do Quilombo do Tabuleiro da Vitória e Adjacências - AMQTVA e integrante do Coletivo dos Estudantes Quilombolas na UFRB) e uma moradora típica do Recôncavo Baiano. Mas, antes de ser um quadro militante das causas que abraçava, Elitânia era uma filha, uma neta, uma irmã, querida amiga e referência de uma quantidade incalculável de pessoas. Ela era para além de uma guerreira, uma pessoa amada e respeitada por muitos.

O assassinato covarde e brutal que ceifou sua vida de forma a não dar-lhe quaisquer chances de se defender não somente interrompeu sua dura e corajosa trajetória de vida, de uma futura profissional formada em serviço social pelo CAHL-UFRB (campus de Cachoeira e São Félix) e de uma grande porta-voz da luta nacional dos povos tradicionais. Foi um dano irreparável às tantas vidas que tiveram a honra de tê-la como parte formadora de suas trajetórias, nos muitos espaços que ela vivenciou, construiu, que se fez presente de corpo e alma. Perdemos nossa irmã valorosa para um projeto de sociedade fadado ao fracasso, que encontrou em seu algoz o executor de um projeto de extermínio de nosso povo.

Se não andamos sós, se o espírito de um povo se manifesta na coletividade, que nos forma, se nossa humanidade está na partilha de vivências, Elitânia não morreu sozinha, todos nós morremos um tanto junto com ela. A noção de que as violências e mortes que nós sofremos não são individualizadas é parte fundamental para nos reerguermos quanto povo. Cada parte de nós que é Elitânia agora sangra, ferida aberta feita a bala. A dor não encontra palavras exatas. O ato em sua memória, em respeito a sua existência, foi um fardo pesado, mas necessário, externar nossa dor e revolta e demonstrar que nossa irmã nunca andou só!

Violências e assassinatos como as que Elitânia sofreu tem um agravante, foram crimes premeditados de ditos ‘companheiros’ ou de ex-companheiros que não aceitam o término, que dão a violência da mais covarde como resposta. Nós mulheres inclusive, diferente do que o senso-comum nos diz, muitas vezes alertamos às autoridades competentes, familiares e amigos, denunciamos as várias ameaças recebidas e agressões sofridas, medidas protetivas quando aplicadas são feitas de forma nitidamente insuficientes. A pouca importância que o Estado e a sociedade antinegra e machista como um todo expressa, diante, novamente, de uma tragédia anunciada por quem dela sofre e por quem dela vai executá-la.

Todos os dias nos chegam notícias de feminicídios, nos chegam em fartura, com detalhes sórdidos, com requintes de crueldade advindos de pessoas a quem elas algum dia já chamaram de companheiros, parceiros, amor, a quem elas deveriam encontrar compreensão, cuidado-mútuo e acima de tudo, respeito. Respeito de verdade, daquele que numa recusa de manutenção de uma relação, entender o NÃO como uma decisão advinda de outro ser humano que merece viver e ter suas escolhas respeitadas, por mais doloroso que possa ser o término.

O bárbaro ato praticado por seu ex-companheiro, o assassino Alexandre Passos Silva Góes (mais conhecido como Zezinho), um homem negro, expõem o triste quadro de uma realidade comum a muitas mulheres negras. Parcela significativa dos algozes de mulheres negras são seus antigos namorados, noivos, maridos, irmãos, pais, amigos, filhos, homens de seu cotidiano, homens próximos que, sobre N desculpas que não se justificam, se acham no direito de tomar-lhe a vida quando assim quiserem, como quem acredita ter o direito de destruir o bem que considera seu quando este não mais o agrada, descartando uma vida como se fosse nada.

A naturalização desses atos desumanos desnudam o quão longe o sistema colonial destruiu as referências de afeto e cuidado-mútuo, não somente com as partes diretamente envolvidas, mas com as pessoas do entorno, que convivem esses conflitos e muitas vezes ignoram os sinais de um assassinato feito etapa por etapa.

A criação e fortalecimento das redes de mulheres negras destinadas à autoproteção e vigilância, a necessidade de múltiplos espaços de formação nas redes de ensino para a educação nossas crianças, a construção de espaços de diálogo e debate de homens negros para apoio às mulheres negras e no acompanhamento de homens negros que demonstrem trajetórias similares a do assassino Alexandre Góes, são somente algumas das possibilidades que nós, quanto uma organização negra com mais de 40 anos de história, nos dispomos a construir com quem quiser de fato transformar o luto em luta, para que fins trágicos como Elitânia parem de se tornar o cotidiano de trajetórias tragicamente interrompidas de tantas mulheres negras.

O novembro negro de 2019 para nós expressa um ano difícil para a luta negra, cheio de perdas, de derrotas, de ameaças, de um Estado que quer parar o avanço do Povo Negro de todas as formas possíveis e inimagináveis, que despreza nossas vidas, que escancara a necropolítica à moda antiga do jeito genocida de administrar o Brasil, à moda dos senhores de engenho da política e empresariado, à moda dos capitães do mato de figuras públicas que discursam o auto-ódio, de navios negreiros camburões, de latifúndios sem fim regados a nosso sangue e fertilizado com nossos corpos!

Que o respeito real a Elitânia nos seja capaz de causar continuadamente a todos(as) revolta e ódio suficientes para mudarmos o mundo em que vivemos para além de momentos pontuais como o do ato que construímos a tantas mãos ontem, dia 28 de novembro. Que a nossa dor e inconformidade nos sejam também fonte para a transformação que Elitânia esteve a construir em sua tão curta vida e que agora nos dá força quanto uma ancestral que se transformou. Elitânia TEM de viver através de nós e nós somos Elitânia quando lutamos por sua memória e por seus projetos para nós, para os quilombos, para nosso povo! Que sejamos um povo consciente do estado de guerra que estamos imersos e estado perpétuo de luta pela vida dos nossos e nossas, razão ao qual ela continue a se orgulhar de fazer parte!

Recôncavo da Bahia - 29 de Novembro de 2019

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